sexta-feira, 24 de junho de 2011

Luzia-Homem: um caso de neurose obsessiva

Rouanet (1996) afirma que Freud possuía um apresso especial pelos romances e tragédias gregas, onde é evidente uma interdependência entre psicanálise e literatura. Logo, o analista não pode evitar o poeta, posto que esse narra diversas tramas psicológicas, mas antes de tudo fala do homem: suas paixões, ódios, desejos, esperanças e medos.

Para Rouanet (1996), tanto a literatura como a psicanálise debruçam-se sobre o mesmo material de trabalho e obtêm o mesmo resultado, porém por caminhos distintos. O analista se volta para os mecanismos psíquicos do outro (analisando), já o romancista ou poeta emerge entre seus próprios materiais inconscientes, em vez de censurá-los, oprimindo-os, o poeta os sublima produzindo sua obra literária. 
      
Deste modo, pode-se afirmar que a arte, segundo Rouanet (1996), se coloca em um intermédio entre a realidade, que priva o sujeito do desejo, e o mundo da fantasia, que realiza o desejo inconsciente. O romance não só se constitui em fantasias, mas está também inserido na realidade, sendo um livro que segue padrões e exigências da sociedade.

A obra literária é “[…] em vez de uma fantasia associal ele produz uma obra que permite a leitores e espectadores viverem por sua vez suas próprias fantasias, consolando-os pela frustração dos seus desejos” (ROUANET,1996, p.536). Pode-se assim inferir que a literatura tanto quanto a fantasia e o sonho são passíveis de serem interpretados. Como decorre no sonho, os romances também apresentam deformidade do seu conteúdo latente por meio da estética e regras gramaticais, sofrendo da ação da censura. A interpretação psicanalítica de um romance busca o desejo inconsciente escamoteado pela estética e erudição.  
      
Através de recortes do romance Luzia-Homem se propõe fazer uma interface entre a psicanálise e a literatura, apresentando o que esses dois saberes têm a dizer acerca da neurose obsessiva em mulheres.

Acerca do romance cearense Luzia-Homem do sobralense Domingos Olympio pode-se destacar que além de ter grande repercussão nacional, foi uma obra que divulgou a última fase do Naturalismo. O destaque dessa obra, além de adentrar as questões do sertão nordestino na grande seca do final do século XIX e a vida cotidiana dos sertanejos retirantes, traça um perfil diferenciado de uma mulher, fora dos padrões estabelecidos pela sociedade vigente. Divergir em muito do perfil das mulheres burguesas e casadoiras de José de Alencar e da literatura romântica, ao falar da sociedade da capital brasileira. Esse romance cearense quebra a hegemonia das histéricas na literatura brasileira ao traçar uma mulher cheia de excessos, produtiva, trabalhadora, a qual não sonha com filho e casamento.  Olympio (1985) descreve em sua obra uma mulher que não se destaca por sua fragilidade ou doçura, mas por sua atividade e bravura, traços próprios da masculinidade em sua potência fálica.

1. Quem era Luzia-Homem ?

Era uma jovem mulher que trabalhava na construção da penitenciária de Sobral. Ela era a única operária mulher entre homens jovens e vistosos que empunhavam tijolos, cintilando em suor. As demais mulheres trabalhavam na costura de roupas da cidade. Todos na cidade se horrorizavam com os feitos da Luzia-Homem.  

Segundo Olympio (1985, p. 9):

Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d’água, que valia três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita, removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão, causando pasmo aos mais valentes operários.

Mas apesar dessa potência fálica e masculinidade, Luzia-Homem era uma mulher, inscrita no não-todo, que se manifestava apesar de suas tentativas de tamponar o desejo, em seus contornos femininos representados pelos quartos arredondados, que causavam o desejo de todos os homens da cidade, com suas amplas formas.

Pode-se inferir que Luzia-Homem era como as mulheres descritas por Valore (2005) que cada vez mais aparecem em sua clínica na atualidade. Essas são mulheres belíssimas, contudo, observasse que para essas a beleza não é mensurada como algo ditoso. A beleza é levada como um fardo, que impossibilita que essas mulheres deixem de serem olhadas.
Deste modo, pode-se estabelecer uma diferença entre a posição histérica e de Luzia-Homem e das jovens narradas por Valore (2005), uma vez que as histéricas vivem no árduo trabalho de se reconstruir frente ao olhar do outro, buscando sempre que esse denuncie o que deve ser corrigido, contudo nunca conseguem dissipar a falha do corpo, ou seja, de uma falta. Já na neurose obsessiva o corpo não é marcado por uma falha, mas padece do adoecimento do excesso. Luzia-Homem se revolta com os olhares que desperta no outro, enquanto sua melhor amiga Terezinha que se enquadra na histeria sente ciúmes dos olhares que sua amiga causa aos homens. Enquanto Luzia rejeita e repudia tais olhares.  

São as palavras de Terezinha que denunciam a feminilidade de Luzia a destituindo da posição de mulher fálica. Tal cena acontece quando Terezinha vislumbra Luzia tomando banho de rio em noite de luar. A amiga denuncia sua castração ao dizer: “[...] porque vi com meus olhos que é uma mulher como eu” (OLYMPIO, 1985, p.16).
      
Luzia-Homem trabalhava com afinco e prazer, sentia-se útil no trabalho e produtiva, não cai em tentações e devaneios como as moças jovens da cidade. Além disso, tinha de ganhar mais, pois tinha se sustentar e cuidar da mãe doente, a qual foi incumbida da missão por seu Pai ao falecer. Segundo Olympio (1985, p. 9):

Em pela florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, [...], encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas das morenas moças do sertão. [...] cumprindo, com inalterada calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus à dobrada ração.

Pode-se resumir que Luzia-Homem era uma mulher castrada como todas as outras. Porém aceitar essa feminilidade é bastante antagônico na mulher obsessiva, já que essa apresenta como completa, mas o real sempre incide gerando angústia ao mostra que ela tem o buraco ou então que o outro tem o buraco. Para Olympio (1985, p. 15):

Sob os músculos poderosos de Luzia-Homem estava a mulher tímida e frágil, afogada no sofrimento que não transbordava em pranto, e só irradiava, em chispas fulvas, nos grandes olhos de luminosa treva.

2 A dívida para com o pai morto:

Quando criança Luzia-homem morava em um pequeno sítio com o pai e a mãe. A mãe sempre lhe fora extremamente afetuosa e bondosa, porém com uma saúde limitada e frágil. O Pai era um homem forte e trabalhador. Luzia se identificava com o Pai e o admirava, queria ser o filho homem que ele não teve, vestia-se como o pai e aprendia o mesmo ofício paterno. Lidava com os animais e cuidava da roça. Assim não só ajudava nos serviços do Pai em lidar com a terra, como o auxiliava a cuidar da mãe. Durante a grande seca do século XIX que assolou o Nordeste, seu pai falecera, deixando o dever da filha de cuidar das terras e dá mãe.
      
Pela falta de chuva, foi necessária a venda das terras, por isso passou a trabalhar na obra da prisão, quando não estava trabalhando, estava ministrando cuidados a mãe doente. Luzia-Homem tinha uma dívida simbólica para com esse Pai morto, em prol de tal dívida ela renunciava seus desejos: de sair e se divertir como as outras moças, de ter um namorado, mesmo nutrindo afetos a um rapaz, e ir para o litoral. Não podia levar a mãe ao litoral, pois a viagem era longa e árdua e no estado de saúde da mesma não resistiria à jornada. Apesar dos sacrifícios, abdicava de seus desejos em prol de pagar a dívida. 

Rinaldi (2003) fala que a característica do obsessivo é a anulação do desejo frente sua posição ao desejo materno, identificando-se muitas vezes com o objeto anal, dos restos, dejetos. Ressalta ainda a dependência da neurótica obsessiva com Outro em relação ao desejo, esperando que esse der seu aval quanto ao seu próprio desejo.  Constantemente nega o fim, a morte, a perda, ou seja, os representantes da castração. Assim, na neurose obsessiva observa-se essa dificuldade de sustentar o lugar do desejo, buscando sempre mecanismos para situar esse desejo como fora, na tentativa de anulá-lo. Pode-se observar essas características em Luzia-Homem, que constantemente se denigre como mulher que cause o desejo do homem, se colocando no lugar de dejeto, de flagelo, descuidada, suja.  Fora seu constante e árduo trabalho de anulamento do desejo.
      
Contudo, não era árduo para Luzia-Homem essa vida de deveres, abdicando de seus desejos inconscientes, ao sustentar e cuidar da mãe, uma vez que essa era tudo no mundo para a jovem, a vida lhe corria bem, pois tinha aceitado seu destino sem queixa junto à dívida para com o pai, residindo no circuito da demanda. Tudo muda quando emergem os desejos do soldado Crapiúna junto a ela.  Desejos esses que se colocam na ordem do insuportável. Posto que o desejo do outro, deflagra seu próprio desejo, denunciando a falta, ou seja, a castração. Crapiúna era o soldado que guardava a obra da penitenciária, esse não se conformava com o desprezo de Luzia. Ele vivia a persegui-la com galanteios e palavras lúbricas, contudo ela nunca aceitava suas palavras, rejeitando com empáfia e nojo. 
      
Apesar de todas as tentativas obsessivas de Luzia de tamponar a falta, a castração e o real, esse sempre emerge lhe causando estranhamento e angústia.  O sexo apresentava-se nas cartas que o soldado lhe enviava, essas lhe deixavam incinerada, não conseguindo despregar os olhos até a última linha, depois se sentia ultrajada, culpada, jogando-as fora.  Porém, as palavras retornavam em pensamentos obsessivos, esses a torturavam. Tentava não pensar, trabalhando e rezando com mais afinco, mas as palavras sempre retornavam, e a cada retorno ela dizia: “Este homem será o causador da minha desgraça” (OLYMPIO, 1985, p.14).
      
Diferente de Capriúna, aonde se encontra o representante do sexo, tem-se do outro lado Alexandre, representante do amor, que era seu grande amigo, que lhe auxiliava nos cuidados para com a mãe. Esse trabalhava como guarda do armazém da cidade. Pode-se colocar aqui essa dissociação entre amor e sexo. Alexandre nutria grande afeição por Luzia a pedindo em casamento, porém ela nunca aceitou. Não queria casar com ele, pois se assim o fizesse estaria aceitando ajuda dele para dividir seus fardos, porém não admitia que ninguém se sacrificasse por ela, apenas ela poderia pagar a dívida ao Pai morto. 
      
O soldado rouba o armazém e faz com que Alexandre seja preso em seu lugar, deste modo ele se livra do rival. Luzia-Homem tenta provar a inocência do rapaz, com todo afinco, além de levar a refeição do rapaz todos os dias. Ela sente-se em dívida com o rapaz, pois ela tinha se rejeitado a deita-se com o soldado. Logo, o rapaz pagava o preço de sua renuncia de se colocar como objeto desejante. Para soltá-lo resolve trabalhar em dobro, pois assim teria dinheiro para pagar uma feiticeira que fazia uma reza para libertá-lo. Entre suas empreitadas para ganhar dinheiro, resolve vender seus cabelos para a mulher do delegado da cidade, era o que tinha de mais belo. A mulher não aceita seus cabelos, porém lhe dar o valor que a moça pediu pela venda. E diz a Luzia que desse dia em diante os cabelos são dela, portanto Luzia fica com os cabelos na cabeça, mais pertence a ela mulher do delegado. Como agora os cabelos não lhe pertenciam, Luzia passa a cuidar cautelosamente dos mesmos, passando óleos e os lavando, para que assim possa pagar a dívida para com a mulher do delegado. 
      
Luzia recusa se casar com Alexandre ao dizer que seu dever para com ele terminava quando ele fosse solto, cortando seus afetos do dia que ele é liberto. Ou seja, só fora possível manifestar seu desejo junto ao rapaz quando esse se colocava na ordem do impossível, ele estava preso, quando ele é liberto e o desejo pode ser satisfeito, é novamente anulado. Assim que Alexandre é solto, Luzia-Homem com a mãe e a família de Terezinha partem para o litoral.

3 Considerações finais acerca do romance:

Em resumo o que se pode inferir de Luzia-homem segundo Olympio (1985, p.45):

Sentia-se incapaz de amar; carecia-lhe a fraqueza sublime, essa languidez atributiva da função da mulher no amor, a passividade pudica, ou aviltante de fêmea submissa ao macho, forte e dominador, irresistível, como aprendera na intuitiva lição da natureza: essa comovente timidez de novilha ante a investida brutal do touro lascivo, sem prévios afagos sedutores, sem carícias e beijos correspondidos, como nos idílios das rolas mimosas  Não: não fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus músculos possantes para resistir, fechara-lhe o coração para dominar, amando como os animais fortes: procurar o amor e conquistá-lo; saciar-se sem implorar, como onça faminta caindo sobre a presa, estrangulando-a, devorando-a. Não era mulher como as outras, como Teresinha, para abandonar a família, o lar, a honra, por um momento de ventura efêmera, escravizando-se ao homem amado, contente de sacrifício, orgulhosa do crime, insensível ao vilipêndio, sem olhar para trás onde ficaram os tranqüilos afetos, para sempre perdidos: e, por fim, consolada à torpeza do repúdio infame, à margem da estrada da vida, como um resíduo inútil, condenado a vis serventias, trapo que foi adorno cobiçado, molambo que vestiu damas formosas, casca de fruto saboroso e aromático.
Não; fora feita para amar. Seu destino era penar no trabalho; Por isso, fora marcada com o estigma varonil; por isso, a voz do povo que é eco de Deus, lhe chamava Luzia-Homem.

Como uma mulher obsessiva, encontra-se em Luzia-Homem uma nostalgia do ser, nesse retorno ao mundo da completude e tranquilidade do seio materno, ou seja, de ser o falo da mãe. Não se colocando assim na reivindicação histérica de ter o falo, de ter um homem. Além das questões de não sair da lei, não operando o desejo, por o considerar ilícito e incestuoso. Não consegue pela supremacia superegóica infligir crimes e gozar deles, vem à culpa. Nesse trecho citado acima pode-se analisar a ambivalência própria do obsessivo em Luzia-Homem, no ódio, fome, destruição de devorar o outro, de completude ter o outro completamente em fundição na fantasia de comer o outro inteiro.  

Sua força é voltada para a produção e o trabalho, mas irremediável é uma mulher e a incompletude de seu corpo a denúncia como uma mulher, como qualquer outra como proclamou Terezinha ao vê-la nua tomando banho de rio, ela se espanta com o comentário e logo corre para tamponar sua falta com a toalha encobrindo os buracos do seu corpo, velando sua castração.

Luzia-Homem primava sobre tudo por sua honra e moral, não conseguindo agir fora da lei, mesmo em suas situações de penúria e miséria. Os poucos flertes que perpetrava o desregramento como: ao ler as cartas do soldado, ao pentear com delicadeza e esmero dos cabelos, do ódio que cultivava pelas mulheres da cidade que falavam mal dela, queria bater nelas ou grita com essas, porém sempre calava, terminava por censurar-se e preencher-se de sentimentos de culpa ou autopunitivos. Luzia não apenas trabalhava na construção de uma penitenciária, como construía para si um aprisionamento a distanciando dos desejos incestuosos, no momento em que essa tenta romper com essa prisão fazendo um corte, ao partir para a praia, o soldado Capriúna foge da cadeira a encontrando na estrada. Nesse embate, Luzia-Homem mais uma vez reage com todas as suas forças contra esse lugar objetal e passivo, ocupado pela mulher frente ao desejo erótico masculino, ela o morde, o ataca, resistindo às tentativas do soldado de seduzi-la, até que o soldado a mata enfiando uma faca ao seu peito. E a última palavra de Luzia-Homem é mãezinha, remetendo a esse momento anterior de completude para com a mãe.